Demarcando território: a agenda do Prêmio Nobel e a ideologia dominante

20/03/2011 04:02

Demarcando território: a agenda do Prêmio Nobel e a ideologia  dominante

*por Yuri Martins Fontes

Brasil de Fato
Edição 417 - de 24 de fevereiro a 2 de março

    Em tempos de desespero que prenunciam o aprofundamento da crise capitalista iniciada em 2008, o famoso Prêmio Nobel de 2010 foi a grande cartada ideológica em defesa do abatido neoliberalismo, que cambaleia mundo afora, à medida que a crise se aprofunda – em revoltas que vão da Grécia aos países árabes. A jogada midiática da Academia Sueca – que causou constrangimento e polêmica – veio desta vez pelos seus dois principais flancos: o prêmio “da Paz” e o “da Literatura”. O primeiro foi para o chinês dissidente Liu Xiaobo – ex-professor da Universidade de Columbia (Nova Iorque) e defensor da implantação do capitalismo na China segundo os moldes norteamericanos. Nada mais pertinente, visto a pressão das potências ocidentais para que a China arque com parte do prejuízo da crise, encarecendo seu yuan – no que vem sendo chamado de Guerra Cambial. Contudo, neste ano os ideólogos do pensamento único surpreenderam a opinião pública com seu prêmio literário, concedido ao escritor e político fundamentalista neoliberal, Mario Vargas Llosa, peruano naturalizado espanhol – e que coincidentemente (ou não) também vive em Nova Iorque, onde leciona na Universidade de Princeton.
    Como é sabido, tradicionalmente o “Nobel da Paz” tem seu cunho ideológico bastante explícito – agraciando em geral líderes e ativistas ligados aos interesses das grandes potências. E por vezes os premiados têm bastante sangue no currículo, como é o caso de Theodore Roosevelt (Prêmio de 1906), para quem “o bom índio é aquele morto”; também do sionista Shimon Peres (1994), articulador do projeto de militarização de Israel – e que mais tarde se tornaria um genocida, ao liderar o imenso bombardeio do Líbano; já em 2009, foi a vez de Barack Obama, quem aumentou o contingente militar no Afeganistão – mesmo após denúncias de crimes desta guerra virem a público.
    Já o histórico do Nobel de Literatura, desde os fins da Guerra Fria não era tão abertamente direitista – quando em 1987, foi premiado o desconhecido dissidente soviético exilado nos EUA, Joseph Brodski. De todo modo, a prática de alternância entre escritores, ora conservadores, ora progressistas, sempre funcionou como adorno de “imparcialidade” para a Academia Sueca – jogo que J-P. Sartre se recusou a participar, quando declinou da premiação em 1964, e mesmo Albert Camus, que em 1957 só aceitou o prêmio por ameaças de seu editor.

Guerra comercial contra a China

    O caso chinês – num momento em que muitas nações apostam no comércio com a potência asiática para voltar a crescer, foi o que mais deu a falar. Ou melhor, a “calar”. Apesar da China não promover guerras e não ter bases militares no estrangeiro, o país jamais recebeu um Nobel que agraciasse sua prática pacífica e cultura milenar. Em 1989, o prêmio “da Paz” foi dado ao Dalai-lama, líder espiritual e ex-ditador da aristocracia que então vigorava no Tibete, hoje exilado na Índia. Em 2000 foi a vez do escritor neoliberal dissidente Gao Xingjian, exilado na França, receber o de literatura. Agora, dada a necessidade de acirramento da guerra comercial-cambial liderada pelos EUA, a Academia se lembra novamente dos orientais. Excetuando-se os grandes inimigos chineses, Japão e EUA (e alguns de seus aliados), a grande parte do mundo preferiu não se pronunciar. Foi o caso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que em outubro, pouco antes da reunião do G-20, recebeu seu colega chinês Hu Jintao para discutir negócios bilaterais, e não tocou no assunto do prêmio da Paz. Embora tenha sofrido pressão interna e externa para fazê-lo, Sarzozy preferiu não cutucar o segundo maior cliente dos produtos europeus, e a nação que mais vende à UE – preservando assim transações valiosas, como as vendas de cem aviões Airbus e de dois reatores nucleares de nova geração. O comércio entre China e UE deve ultrapassar neste ano a casa dos 400 bilhões de dólares – um crescimento de 34%.
    Diante da má repercussão na China, Sarkosy, ao menos desta vez, parece ter feito a escolha correta. “Xiaobo foi considerado culpado de um crime – conceder-lhe o Nobel equivale a promover o crime” – afirmou o porta-voz chinês Ma Zhaoxo. Logo após a premiação, a China cancelou acordos comerciais relativos à pesca com a Noruega (o Comitê para a Paz é aí sediado em homenagem à antiga nação sueco-norueguesa), uma das mais importantes fontes de renda dos escandinavos. Conseqüência esperada, pois antes da premiação, o governo chinês já havia tentado dissuadir os noruegueses: "O Prêmio deveria ser concedido àqueles que trabalham para promover a harmonia étnica, a amizade internacional – eram os desejos de Alfred Nobel", declarou na época o ministério chinês do Exterior.
    Já o governo do Paquistão – importante aliado ocidental na região – foi mais longe que o francês, manifestando seu “espanto” com a concessão – que segundo seu comunicado, “não condiz com o prestígio do prêmio”, ressaltando a sua “politização”, com o “intuito de interferir em assuntos domésticos dos Estados”. A declaração diz ainda que Xiaobo “foi sentenciado pelo judiciário e não fez nada que o pudesse qualificar para o Nobel”, o que agrava a tensão, especialmente num momento em que a China “dá passos em direção ao respeito dos princípios internacionais, no âmbito legal e humanitário”. Para a imprensa chinesa, o que vem ocorrendo é uma “guerra ideológica” contra Pequim. O editorial do Global Times (jornal chinês em língua inglesa) analisa: “O Nobel da Paz não é uma via isolada, mas faz parte de um concerto lançado por diversas ONG’s e entidades econômicas internacionais, orquestradas pelos países desenvolvidos”. Para o jornal, o que as potências ocidentais esperam é que “a China se afundará sob o efeito desta cruzada – o que no entanto está longe de acontecer” – e completa: “Parece que no planeta, a única via que os povos têm a permissão de adotar, é a via do Ocidente, com suas atitudes ocidentais e cristãs”.
    Xiaobo, agora aclamado como defensor dos direitos humanos, foi condenado em 2009 a onze anos de cadeia por “tentativas de subversão do Estado”. A condenação foi divulgada pela mídia ocidental como um gesto injusto e intolerante “hostil aos valores universais”. Contudo, segundo artigo da Global Research – agência de informação do Quebeque – o que os meios ocidentais “não mencionam” é que o que causou sua prisão foi a assinatura da Carta 08 (manifesto em ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e das Liberdades). Tal documento se trata “não apenas de uma demanda por liberdades políticas e civis, mas antes de um projeto para tornar a China uma réplica da sociedade dos EUA, e eliminar assim os últimos resquícios de socialismo no país”. Xiaobo defende que a China deve se tornar um mercado livre sem nenhuma regulamentação do Estado – em tempos que mesmo o Estado norte-americano intervem, e muito, em sua própria economia. E embora a grande imprensa evite comentar, a Declaração Universal endossa também direitos econômicos, como o direito ao trabalho e a um padrão de vida adequado para a saúde e o bem-estar familiar, inclusive citando a alimentação, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, como o direito à seguridade em caso de desemprego. E é reconhecido pela próprio Banco Mundial que o socialismo chinês retirou da miséria 400 milhões de pessoas, em menos de uma geração. Enquanto isso, o Ministério da Agricultura dos EUA apontou recentemente que o número de famintos em seu país cresceu, atingindo hoje quase 50 milhões de cidadãos – um sexto da população.
    O relatório da Global Research rememora ainda o fato de Xiaobo ter se aproximado à CIA nos anos 90, ao defender o Dalai Lama – o que, conforme a agência, foi contraditório a qualquer noção de direito humano, pois que o Lama era “o líder de uma aristocracia feudal que possuia escravos e vivia suntuosamente nas costas de servos tibetanos, antes de o Exército Popular pôr fim ao seu governo opressivo”. Importante notarmos que não se defende aqui o domínio chinês sobre o Tibete, assim como não se defende o império dos EUA sobre Porto Rico e etc, e nem o francês sobre a Guiana-Caiena ou o espanhol sobre os bascos e o franco-espanhol sobre os catalães – mas se trata sim de expor que o “venerado” Dalai-lama era de fato um endeusado senhor feudal.
    Diante de tal impertinência, o prêmio “da Paz” foi criticado mesmo pelos colegas de Xiaobo, que lutam contra o regime. Na opinião do líder opositor Wei Jingsheng – sete vezes candidato ao Nobel –, haveria diversos outros militantes mais engajados que deveriam receber o prêmio antes dele. Há muitos anos, Xiaobo já demonstra publicamente sua “ocidentalização”, chegando a afirmar que: “Nós chineses somos um povo bruto”. Xiaobo, de 54 anos, até 1989 vivia bem nos EUA. Foi apenas durante os últimos dias das manifestações da Praça da Paz Celestial, que ele regressou à China, recolocando-se como intelectual em evidência. E frisemos também que embora o Nobel tenha por lema premiar “manifestações pacíficas”, certamente o episódio da Praça da Paz não se pretendia pacífico – o que fica evidente quando, após a instituição do estado de sítio, os líderes do protesto montam barricadas e enfrentam ativamente o exército, o que culminaria em várias mortes, inclusive de militares. Tampouco Xiabo pode ser encaixado no quesito de “promover a fraternidade entre as nações” – argumento que foi o primeiro a ser usado pelo governo chinês contra a premiação.
    Assim, o professor chinês veio a cumprir o estratégico papel de apoio ao governo de Obama, diante da pressão dos conservadores republicanos e da guerra cambial que quer fazer com que a China arque com uma parte maior dos prejuízos da crise advinda da libertinagem financeira. E veio num momento estratégico, pouco antes da plenária do XVII Comitê Central do Partido Comunista, em que se começou a discutir a sucessão de Hu Jintao, a ocorrer em 2012.

Llosa, o anticoletivista anti-indígena

    Já no caso do prêmio de Llosa, aos 74 anos, a surpreza foi ampla, da direita à esquerda – a ponto de ele próprio reagir com ironia, o que acabou por expor certa desconfiança que era generalizada: “Tinha certeza de que não receberia o prêmio – espero que tenha sido pela minha obra literária e não pelas minhas opiniões políticas”. Isto porque o autor é hoje declaradamente um defensor do liberalismo – o que vem a servir como um garoto-propaganda “nativo”. Sua premiação – voz neoliberal e latino-americana – vem a calhar com a busca dos EUA pela retomada de sua hegemonia perdida dos anos 1990.
    É evidente que hoje, em vista das frustradas tentativas de golpe de Estado na última década (Venezuela em 2002, Bolívia em 2008 e Equador em 2010) – apesar do bem-sucedido golpe de Estado em Honduras –, os EUA não têm mais o mesmo poder de intervenção em seu antigo “quintal”, o que se deve em parte às graves limitações econômicas conjunturais, agravadas pelas duas caras guerras que Obama herdou na Ásia. Assim, Llosa, com suas posições extremistas contra qualquer país periférico que se pretenda autônomo, serve aos interesses neocoloniais como um auto-falante fomentador de uma tão apática reação “latina”. Em seus freqüentes discursos, ainda defende as privatizações por parte de empresas estrangeiras, inclusive a das reservas naturais estratégicas de seu país – sendo ferrenho crítico dos governos progressistas que vêm ocupando espaços na América Latina e levantando sua autoestima na última década.
    De fato, após o declínio da Alca, em 2004, os EUA tentaram “impor” tratados bilaterais, o que só foi aceito por três países – Peru, Chile e Colômbia. É o que nos lembra o pesquisador Paulo Batista Jr, representante no FMI de um grupo de nove países americanos (inclusive o Brasil), em estudo publicado na Revista de Economia Política: “Nesta época quase todos os países da América eram governados por políticos alinhados aos EUA em maior ou menor grau, como Menem, FHC, Fujimori e outros, que serviam de instrumentos de seu poder”. Para ele, “o quadro atual é muito diferente”, pois os resultados “não foram positivos, o que já se poderia prever” – pois “governado de fora pra dentro, nenhum país pode ser bem-sucedido. Daí a importância de se investir na popularidade de Llosa – para quem os anos 1990 foram mesmo o “fim da história”.
    Para que se tenha uma ideia de suas posições, ele defende, para as eleições presidenciais do Peru (2011), que um “cenário positivo” seria a vitória de um candidato do que chama de “centro” – e cita os nomes dos candidatos de plataforma mais submissa, Luis Castañeda e Lourdes Flores. Já a respeito do candidato mais nacionalista Ollanta Humala, de centro-esquerda, dispara: “É um grande perigo apoiado por Chávez, o que é incompatível com a democracia”. Quanto a ele mesmo, afirma não querer ser “político profissional”, mas diz que continuará atuando por “certas causas”. Em 1990, quando os marxistas do Sendero Luminoso ainda disputavam o poder, Llosa concorreu à presidência do país – segundo a Reuters, como um “candidato reformista de centro-direita”. Em sua plataforma privatizante – segundo ele inspirada em Margareth Thatcher, “mulher que mudou o rumo da história” – propõe o corte orçamentário e a defesa do mercado livre, o que “alarmou os pobres e trouxe apoio dos conservadores ricos”. Perdeu a eleição para Fujimori e abandonou o país para viver na Espanha.

Llosa: da esquerda à direita

    Nos anos 60 e 70, simpatizante do comunismo, Llosa foi um dos protagonistas do chamado "boom" da literatura latino-americana. Em 1973 escreveu “Pantaleão e as visitadores”, uma de suas principais obras, e desde então seu ritmo literário se arrifeceria dando espaço ao Llosa político, numa escalada que o levaria da esquerda literária, para a direita ativista, nos anos 80. Em 1983, o novo Llosa aparece ao mundo como “o direitista latino-americano” em meio a onda centro-esquerdista da época. Encarregado pelo então presidente peruano Fernando Balaúnde de investigar assassinatos de jornalistas por parte das Forças Armadas, Llosa defende a absolvição dos assassinos – mais tarde condenados em nova investigação. Em 1987, opõe-se à nacionalização de bancos peruanos, reforma proposta pelo então presidente Alan García.
    Formado em Direito e Literatura, atuou como jornalista da France-Presse, em Paris, e em 1963 publicou seu primeiro romance, “La ciudad de los perros” – o qual provocaria críticas dos militares de seu país. Em uma de suas precoces biografias, em 1967, Llosa escreve: “Se Fidel Castro chamasse eleições hoje, a esmagadora maioria votaria por ele, mas nada nos garante que os que o sucederiam seriam tão honestos, patriotas ou lúcidos”. Questionado em entrevista pelo sociólogo alemão Heinz Dieterich Steffan acerca da afirmação, Llosa nega ter escrito o texto – tal qual o nosso neoliberal FHC. Em outra declaração da época, hoje refutada, o escritor afirma que o “Peru é um país onde as estruturas sociais estão baseadas em uma espécie de injustiça total que abarca todas as manifestações da vida”, e ainda: “o preconceito contra o índio e o negro se expressa de mil maneiras dissimuladas”.
    Hoje, com sua concepção política invertida, ele não perdoa nem mesmo as ricas tradições indígenas de seu país – as quais ele tanto defendeu na juventude. Prega que os “índios” formam apenas uma “ínfima minoria”, e que devem portanto submeter-se ao que ele chama de “civilização”. “O desenvolvimento e a civilização são incompatíveis com certos fenômenos sociais, como é o caso do coletivismo” – afirmou em 2009, esquecendo-se que foi justamente a noção de coletividade que levou ao topo o império inca. Já quanto ao “fenômeno” de movimentos de defesa dos direitos indígenas – uma referência à ascensão de Evo Morales e Rafael Correa –, o autor afirma serem “ofensivos” e “dissimulados”: “Nenhuma sociedade coletivista ou impregnada com esta cultura se desenvolve”. Mas seu alvo preferido costuma ser o presidente reeleito da Venezuela, Hugo Chávez. E nem mesmo seu colega (prêmio Nobel), o consagrado Gabriel García Márques, escapa de suas farpas. Conforme o Los Angeles Times, o desafeto entre ambos se iniciou em 1976, num incidente no México, quando Llosa “furou os olhos de seu ex-amigo García Márques, devido a disputas políticas”.
    Dentre as várias críticas à premiação de Llosa feitas por seus próprios pares, destaca-se a síntese do escritor brasileiro Alberto Manguel, expressa durante o Festival Literário Internacional de Pernambuco. Perguntado sobre a questão, afirmou lacônico: "Que o prêmio seja destinado a um ser humano imundo, não quer dizer que não seja um grande escritor". Já na opinião de M. H. Lagarde – da conservadora Associated Press !! –, o peruano deveria ter recebido o prêmio por sua obra “há muitos anos, quando era um escritor, não um político”.

E o Nobel não está só: prêmio europeu novamente ataca Cuba

    E o prêmio Nobel não está só na cruzada neoliberal. O parlamento da União Europeia concedeu em outubro o prêmio de direitos humanos Sakharov, ofertado a “indivíduos excepcionais que combatem a intolerância, o fanatismo e a opressão”, ao psicólogo e jornalista Guillermo Fariñas. Sua trajetória pelos ditos “direitos humanos”, inicia-se em Cuba no ano de 1989, quando se desliga da Juventude Comunista e parte em defesa do general Arnaldo Ochoa, ligado à máfia de Miami e condenado à morte em 1989 por narcotráfico. Após suas 23 midiáticas greves de fome – a última encerrada em julho passado – o governo cubano acabou por ceder, numa demonstração de boa vontade para negociar o fim do embargo econômico imposto pelos EUA, e decidiu libertar 52 prisioneiros. A Espanha defende o fim das sanções, mas a majoritária direita europeia se opõe. O mais curioso é que concorria com o cubano, uma ONG israelense, crítica dos massacres contra palestinos – fato que foi considerado menos relevante. E com o agravante de que é a terceira vez que um opositor ao regime socialista cubano recebe o Sakharov.

*[Yuri M. Fontes é jornalista e filósofo]