Antonio Cândido: o maior crítico de literatura brasileira fala de sua amizade com Oswald de Andrade

06/07/2011 19:49

 

Antonio Candido, o mais importante crítico literário do País, acaba de dar uma raríssima entrevista coletiva na Pousada do Pardieiro, onde está hospedado em Paraty. Fizeram perguntas, entre outros, os repórteres Miguel Conde, do Globo (ele fez a maior parte das questões sobre crítica literária); Fábio Victor, da Folha; e Bira, do Estadão.

Ele reclamou que jornalistas sempre mudam o que ele fala, então, em respeito a ele, resolvi colocar aqui a íntegra da entrevista.

Este é um post in progress. Vou salvando conforme for tirando a gravação, ok? (a segunda metade da entrevista vai num próximo post)

Sobre o suspense em relação à participação na Flip

É fácil explicar. Eu sou muito idoso. Daqui a uns dias faço 93 anos. E considero a minha vida intelectual já completamente encerrada. Sou um sobrevivente. Não dou entrevistas, não dou cursos, não publico mais nada. Mas acontece o seguinte. Eu fui muito amigo do Oswald de Andrade. Eu e Oswald de Andrade começamos, tínhamos boas relações, depois escrevi uns artigos sobre ele que ele não gostou. Ele desceu a lenha em mim, e ele era terrível, me chamou de mineiro malandro. Mas depois eu achei que tinha sido um pouco injusto nos artigos, então fiz um ensaio sobre Oswald de Andrade, e ele gostou. Aí ficamos amigos e amigos mesmo. Fomos muito amigos. Inclusive eu fui padrinho de um filho dele, que infelizmente morreu com 20 anos num desastre de automóvel.

Eu vim aqui pelo seguinte. Porque a filha dele, a Marília, amiga de infância da minha filha, pediu e eu achei que eu sou provavelmente o último amigo vivo do Oswald de Andrade. Não sou da geração dele, sou 30 anos mais moço que ele, quase. Acho que sou da geração seguinte. Então eu achei que eu talvez tivesse obrigação de contar como é que eu e a minha geração víamos aquela personalidade vulcânica do Oswald de Andrade. Combinei com o José Miguel Wisnik, meu aluno, fez mestrado comigo, doutorado, meu grande amigo. Zé Miguel falará sobre como a geração dele viu Oswald. Só faltou uma pessoa da geração de Oswald de Andrade, mas aí… Não é possível mais. Eu vim para dar o meu testemunho.

Eu vim para dar meu testemunho por causa disso, porque só quem conheceu Oswald de Andrade pessoalmente pode testemunhar sobre a personalidade raríssima que ele tinha.

Sobre se eventos literários como a Flip podem prejudicar a discussão literária propriamente dita

É possível. Claro. A minha visão é uma visão de amigo que quer mostrar como… Eu não vou falar nem sobre a obra dele, nem sobre a biografia dele. Vou falar sobre a personalidade literária dele. E a relação que essa personalidade literária tem eventualmente com a obra. Esse é o meu tema. Depois o Zé Miguel Wisnik falará sobre como a geração dele viu Oswald.

Eu vim por causa disso. Enfrentei essa complicada serra de Paraty, que não é brincadeira.

O que distinguia o Oswald que a geração dele conheceu do Oswald que as novas gerações conhecem

A única coisa que tem de realmente própria é o contato pessoal. Conviver com aquela pessoa, ver aquela pessoa fazer piada, almoçar, jantar, ficar bravo, xingar os outros, fazer as pazes, estar com dinheiro, estar sem dinheiro, isso foi o que eu vi. O cotidiano. Nada de extraordinário. Mas Oswald de Andrade, dada a personalidade dele, tornou-se um mito. Inventava-se coisas. Inventava-se que ele tinha um filho chamado Lança Perfume Rodo Metálico (foi isso o que eu entendi da gravação). Aí diziam: Não, não é esse. É Rolando pela Escada Abaixo. Contava-se que ele tinha roubado uma normalista à luz do dia na escola normal. A personalidade dele chamava essa… Ele era mitológico. É que ele fazia o que lhe passava pela cabeça.

Sobre se acompanha a produção literária contemporânea

Nada. Inclusive doei grande parte da minha biblioteca, doei 12 ou 14 mil volumes. Eu to completamente fora do mundo literário, nem sei quais são os autores atuais. Eu saio perdendo, obviamente. Há cerca de 20 anos eu não leio coisa nova nenhuma do Brasil e do estrangeiro.

Sobre o que lê hoje

Leio coisa do passado sobretudo. Eu leio autores que me interessam mais, como Dostoievski, por exemplo. Tolstói, Proust, Machado de Assis, Eça de Queiroz. Não quero dizer que os atuais não sejam no mesmo nível. Só que eu não os conheço.

Sobre ter dito que a atual crítica literária brasileira é muito boa

Muito boa. Estou pensando, egoísticamente, na Universidade de São Paulo e no pessoal que eu conheço lá. Porque se eu vejo sempre os meus antigos alunos fazendo tese, me levam a tese, me mostram, dou uma olhada. Sempre foi um País de boa crítica literária. Você pega a América Latina, nenhum país que tenha (inaudível – avião passando, isso aconteceu algumas vezes durante a entrevista)… Sempre teve, e eu, pessoalmente, tive uma sorte extraordinária porque fui crítico literário militante num tempo de esplendor da literatura brasileira.

Às vezes, brinco com alunos meus que são bons críticos: tenho pena de vocês, porque vocês têm que escrever artigos sobre os autores atuais. Por melhores que sejam, não são Mário de Andrade, não são Guimarães Rosa, não são Carlos Drummond de Andrade… Eu fazia pro jornal um artigo por semana sobre as novidades. Quais eram as novidades? Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge Amado, José Lins do Rego… Essas eram as novidades que eu escrevia: acaba de publicar um livro o senhor Graciliano Ramos (risos). Eu tive a sorte de viver um tempo de esplendor da literatura brasileira. Foi mais ou menos até 1950 e poucos. Não quer dizer que seja má, mas não tem mais aquele esplendor.

Sobre ter vivido um momento de confluência entre imprensa e academia

Isso é outra questão interessante. Eu costumo sempre dizer: eu sou um professor universitário muito defeituoso. Porque fui professor de literatura e não sou formado em letras. Tenho uma ignorância total da linguística, de gramática, tudo isso. Eu sou formado em ciências sociais. Fiz a faculdade de filosofia e ciências sociais e fiz a faculdade de direito quase até o fim. Eu me fiz no jornal. Eu sou de um tempo em que a crítica literária era atividade jornalística. Não havia no Brasil… O Brasil só teve ensino superior de humanidades a partir de 1934. Antes não se ensinava no Brasil regularmente filosofia, sociologia, história, literatura, não se ensinava. Então eu me formei no jornal. Quando eu fui… Eu cursei sociologia. Tive doutorado em letras, eu passei para letras já quarentão. Eu levei para a universidade a crítica jornalística. Hoje é o contrário. A universidade tomou conta da crítica e os professores vem escrevendo em jornal. Eu não, eu fui pra faculdade.

Sobre a crítica militante

Antigamente havia a crítica militante. Havia o seguinte, uma coisa que talvez vocês até ignorem. Havia o crítico titular. Não todos os jornais, mas muitos jornais tinham o que se chamava crítico titular. Eu era o crítico titular da Folha da Manhã, atual Folha de S.Paulo. O que era o crítico titular. Tinha que todas as semanas fornecer um artigo de cinco a seis laudas datilografadas a 32 linhas e 70 toques sobre livros do momento. Ocupava a parte de baixo, chamado rodapé. E tinha um nome fixo. O meu era Notas de Crítica Literária. O do Álvaro Lins, que era um grande crítico do meu tempo, do Correio da Manhã, era Jornal de Crítica. O do Plínio Barreto do Estado de S.Paulo, Últimos Livros. O do Alceu Amoroso Lima, Livros e Ideias. Esse era o crítico titular. Esse representava o jornal. Isso acabou. Não existe mais. Então esse crítico tinha muita autoridade. Ele era o representante do jornal, e não era brincadeira, eu costumo dizer que a crítica literária daquele tempo era uma atividade de alto risco.

Eu recebi um livro um dia. Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem. Quem será? Deve ser pseudônimo, porque isso não é nome de gente, Lispector. Eu não sabia quem era. Então eu tinha que dizer se o livro era bom ou era ruim.

Sobre se a crítica literária hoje assume riscos

Nenhum. A crítica universitária (outro avião…). Os rapazes fazem tese sobre Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego. Agora, a pessoa pegar o livro e dizer este é bom e este é ruim, isso acabou. O crítico literário arriscava sua reputação toda semana. O crítico titular. Essa era a tradição que vinha da França. Era a tradição francesa, que passou para o Brasil. E nós tivemos sempre bons críticos no jornal. José Verissimo no passado, Alceu Amoroso Lima. No meu tempo, Álvaro Lins. Agora, é muito curioso e eu gosto muito de citar dois grandes críticos do meu tempo, admiráveis: Álvaro Lins e Augusto Meyer. Álvaro Lins, crítico titular, toda semana, com vontade ou sem vontade, chovesse ou fizesse sol. Augusto Meyer, escrevia quando queria no jornal. Sobre quem escrevia? Pirandello, Dostoievski, Marcel Proust, Machado de Assis, Cervantes… Ele tava jogando no certo. Aí não tem problema de avaliação, ninguém vai avaliar Cervantes e Machado de Assis. O Álvaro Lins toda semana arriscava a reputação dele. Agora, os dois tipos de crítico havia naquele tempo com muita qualidade. Tive essa sorte extraordinária de ser um jovem crític. Me deram o rodapé crítico de um grande jornal de São Paulo quando eu tinha 25 anos de idade. 24 anos. No meio desses grandes críticos. E era um momento de grande literatura. Eu pude fazer artigos falando do aparecimento de Terra do Sem Fim. De Fogo Morto. De Sentimento do Mundo, Carlos Drummond de Andrade. Escrevi o primeiro artigo no Sul sobre João Cabral de Melo Neto, que ninguém sabia quem era. O próprio João Cabral não ficou sabendo do meu artigo, ele me contou. Anos depois o Drummond falou pra ele… A gente arriscava. E isso acabou. Isso acabou. Hoje a crítica é muito importante, a universitária. Eu acho a crítica universitária brasileira, o que eu conheço, sempre a minha paróquia, excelente. E admiro muito essas novas gerações de críticos que são críticos muito eruditos.

Espaço público de discussão na imprensa

Isso caiu. Cada época com seu perfil.

(Voltando a falar sobre os riscos da crítica universitária) Nada. Ela se arrisca só se é bom ou mal o que ela escreveu. O juízo já está feito. Ninguém vai fazer uma tese universitária sobre o jovem escritor Pedro de Araújo de Paraty, eles vão fazer a tese deles…

Como pode ser a crítica excelente se não se arrisca

Não é tarefa dela se arriscar. Não que seja mal, não é tarefa dela. Inclusive na universidade houve sempre a seguinte tradição no Brasil e fora: não se escreve sobre autor vivo. O professor Lins Figueiredo, grande crítico português que foi professor em São Paulo, dizia: enquanto o autor está vivo, ele pode mudar. Então o professor universitário não tem meios para fazer um juízo sobre ele. Eu fui professor da universidade de Paris por dois anos e lá aprendi que o primeiro autor moderno sobre o qual se deu curso na Sobornne foi Guillaume Apollinaire. Que tinha morrido em 1918. E uma senhora, porque as mulheres são sempre mais ousadas, uma senhora resolveu (depois checo o nome, não peguei) resolveu dar um curso de Apollinaire. “Mas como, esse homem morreu só faz 30 anos” (risos). A universidade estuda o seguro. Agora, hoje em dia mudou. Quando fui estudar literatura na Universidade de São Paulo pela primeira vez dei um curso sobre a teoria do romance, poesia, que usava Carlos Drummond de Andrade… Por que? Porque havia a Editora do Autor, que tinha publicado esses autores. Não havia inclusive os livros dos autores modernos. Na Universidade de São Paulo até eu chegar lá o último autor estudado era Aluisio Azevedo. O mais recente. Porque ainda não estava consolidada a visão. Como vou transmitir para os meus alunos a visão de um autor que não está consolidado. Isso acabou. A minha mulher deu o primeiro curso de modernismo na Universidade de São Paulo. Depois a coisa mudou. Os jovens hoje só querem fazer teses sobre autores atuais. Sobre a Lygia Fagundes Telles são 40 ou 50 teses. Mudou. Agora é difícil falar para os rapazes, não, estude Machado de Assis, não, isso é muito velho. Agora eu quero é autor atual. Mudou, é até um pouco exagerado. Mas é uma conquista. Quer dizer, a Universidade está aplicando os métodos de pesquisa erudita à atualidade. Cada época tem o seu perfil, ou melhor ou pior.

FIM DA PRIMEIRA PARTE DA ENTREVISTA

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Gente, vou almoçar, porque jornalista também é gente. Daqui a pouco coloco aqui a segunda parte, que tem mais ou menos o mesmo tempo do que postei até agora. Começa com ele falando (ou melhor, não falando) do PT.