Aquífero Guarani: um panorama social, político, econômico e ambiental
https://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-agua/aquifero-guarani-3.php
Fonte: www.cori.unicamp.br
por Daniel Rocha de Abreu Salomé
A água tem se tornado uma preocupação cada vez mais freqüente no Cenário Internacional. A percepção de que se trata apenas de um objeto de consumo necessário ao homem vem sendo modificada ao longo dos anos. Atualmente, água é, em última análise, elemento do desenvolvimento econômico e social. Ela está presente nos processos industriais e agroindustriais, e é meio de transporte de diversos vetores de doenças que atingem principalmente os paises mais pobres. Também objeto de tratados internacionais, fundamentalmente acordos sobre o uso de águas transfronteiriças, hoje atinge uma dimensão no Cone Sul que transcende e engloba todas essas questões.
O presente trabalho visa apresentar um panorama geral acerca dessas questões de natureza econômica, social, ambiental e política que permeiam a utilização das águas subterrâneas do Aquífero Guarani. Através de sua análise e a partir do marco teórico do Institucionalismo Neo-Liberal, pretende-se apontar a dinâmica das relações a nível global e regional e como a interação dos atores pode ser capaz de gerar processos que estreitem suas relações e promova o uso sustentável dos recursos hídricos. Para tanto, recorre-se à pesquisa bibliográfica e à pesquisa na internet em sítios especializados, bem como à análise dos documentos constitutivos do projeto, relatórios de execução e outros documentos concernentes elaborados pelos atores envolvidos.
O Aquífero Guarani, localizado em parte sobre a Bacia Hidrogeológica do Paraná, é possivelmente a maior reserva transfronteiriça de água doce do planeta. Subjacente aos territórios de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai ocupa, segundo o Documento de Avaliação do Projeto, uma área total aproximada de 1,2 milhões de km², perfazendo cerca de 6% do território argentino, 10% do brasileiro, 18% do paraguaio e 25.3% do território uruguaio. Na Argentina, sua extensão aproximada é de 225.500 Km2, cerca de 19.1% de sua extensão total. No Brasil, Paraguai e Uruguai esses números correspondem respectivamente a 839.800 Km2 (71% de sua extensão total), 71.700 Km2 (6,1% da extensão total), 45.000 Km2 (3,8% da extensão total). De acordo com Rubens Caldeira Monteiro, existem referências de que o Aquífero Guarani seja ainda maior do que a princípio esperado, ocorrendo na Bolívia, em uma área de 205 mil km2.
Estendendo-se pelos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Santa Catarina e congregando uma população de cerca de 22.662.463 habitantes, sendo aproximadamente 8.444.620 seus usuários efetivos, a agropecuária é a atividade econômica predominante nessa região, com exceção dos Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul que apresentam maior desenvolvimento do setor secundário. Nestes Estados, a atividade industrial concentra-se principalmente nos grandes municípios: Ribeirão Preto, Araraquara, São Carlos, Bauru e Piracicaba em São Paulo; Londrina no Paraná e Caxias do Sul no Rio Grande do Sul. Os principais Estados consumidores são: São Paulo que consome mais de 50% de todo volume atualmente extraído, seguido por Rio Grande do Sul (13,9%), Paraná (13,7%) e Mato Grosso do Sul (11,6%). Os demais Estados apresentam consumo inferior a 5%.
Na Argentina, sua área de ocorrência é a região situada entre os rios Paraná, Uruguai, Iaguazú, San Antonio e Pepirí Guazú, conhecida como mesopotâmia argentina. Ela compreende as províncias de Corrientes, Entre Rios e Misiones sendo que ele pode estender-se pelo restante do litoral. Atualmente o uso recreativo de suas águas em centros termais é preponderante e em algumas áreas das províncias de Misiones e Corrientes há o uso corrente para abastecimento da população.
No Paraguai, sua ocorrência se dá na porção oriental do país, na qual se concentra aproximadamente 97% da população. As águas são utilizadas fundamentalmente para abastecimento populacional. Na região, a possibilidade de contaminação em função da densidade demográfica e a expansão do consumo, tendo em vista que a extração é muito semelhante à recarga estimada, são os fatores de maior pressão e preocupação sobre o aqüífero.
Ocupando a porção norte do território uruguaio, seus usos são fundamentalmente os mesmos que nos outros países: abastecimento populacional e recreação. Há um enorme interesse no desenvolvimento de atividades turísticas, que já garantem uma receita de 90 milhões de dólares anualmente nas estâncias térmicas de Paysandu e Salto , e uma preocupação muito grande com a possível poluição causada por capitais como Artigas e Rivera.
De acordo com uma primeira avaliação realizada por Aldo da Cunha Rebouças, somente as reservas permanentes na porção brasileira do aqüífero seriam da ordem de 48.000 Km3 (ou 48 trilhões de metros cúbicos), enquanto as recargas naturais seriam da ordem de 166 Km3 / ano , sendo que cerca de 40 Km3 / ano acredita-se que possam ser explorados sem danos ambientais, volume suficiente para abastecer uma população de cerca de 545 milhões de pessoas anualmente, tomando como referência o consumo diário de 200 litros de água por habitante. Em geral, as águas são de boa qualidade e raramente apresentam anomalias quanto à concentração de sais e flúor, entretanto, traços de poluição de nitrato e defensivos agrícolas já foram encontrados nas cidades de Sorocaba e Ribeirão Preto, que juntamente à cidade de Bauru já enfrenta graves problemas com a excessiva exploração.
O Sistema Aquífero Guarani é de natureza interdependente, ou seja, ações danosas em um de seus pontos têm a capacidade de se propagar pelo sistema afetando a qualidade e quantidade de água disponível, como demonstra um conflito transfronteiriço identificado entre as estâncias termais de Salto (Uruguai) e Concórdia (Argentina) no qual o aumento da demanda de um lado da fronteira influencia a capacidade de extração do outro, chegando mesmo a limitá-la.
As vantagens agregadas em função do uso sustentável de mananciais subterrâneos extrapolam a dimensão do abastecimento urbano e rural. Os prazos de realização de obras e o investimento para captação e distribuição são comparativamente mais baratos do que aqueles realizados em rios, lagos e barragens. Os mananciais subterrâneos também não sofrem dos processos de degradação a que os mananciais superficiais estão submetidos, além de não perderem grandes volumes de água por evaporação. A ampliação da captação da água pode ser feita de acordo com o aumento da demanda efetiva, desonerando a população em benefício de futuros usuários.
A produção de energia é outro aspecto funcional que merece destaque. Nos Estados Unidos, China, Japão, Rússia, a utilização das águas subterrâneas naturalmente aquecidas como fonte de energia térmica tem sido eficazmente empregada. Apesar do Sistema Aquífero Guarani ser considerado de baixa entalpia, ou seja, as temperaturas máximas atingidas (70ºC) não são suficientes para gerar processos rentáveis de produção de energia elétrica, uma possível aplicação seria a produção de metano a partir de resíduos líquidos e sólidos. Neste processo, intermediado por bactérias, a manutenção da temperatura na faixa de 30ºC a 50ºC é fundamental. Regiões nas quais a criação de animais produza grande quantidade de rejeitos orgânicos, como o oeste catarinense, são áreas potenciais para implementação deste aproveitamento.
Além de todas essas funções já mencionadas, os aqüíferos também podem ser utilizados para incremento de competitividade em processos industriais, principalmente na agroindústria, cujos principais usos são a secagem e armazenamento de grãos, a secagem de madeiras e evisceração e limpeza de aves, e atividades turísticas.
Em 1977, na Primeira Conferência Mundial da Água, realizada em Mar Del Plata, acreditava-se que ao menos 70% das comunidades carentes de abastecimento de água potável poderiam ser atendidas através da extração subterrânea. A Organização das Nações Unidas inaugurou a década de 1980-90 como sendo a Década Internacional da Água Potável e Saneamento, na qual os governos deveriam investir maciçamente nestes projetos de forma a sanar a grande deficiência de fornecimento desses serviços básicos à população mais carente, entretanto, muito pouco neste sentido foi realizado.
Em 1992, no Rio de Janeiro, desenvolveu-se mais um capítulo a respeito da problemática da água no cenário internacional. Todo o capítulo 18 da Agenda 21 foi dedicado ao tema, evidenciando a necessidade de se implementar um gerenciamento integrado dos recursos subterrâneos e superficiais ao nível das bacias hidrográficas.
Atualmente na cena global, as discussões em torno da água vinculam-se às questões da globalização e do Consenso de Washington: mercantilização, primazia do investimento privado, passagem da cultura do direito para a lógica da necessidade, privatização e liberalização de mercados.
Estimado em 2003 em 400 bilhões de dólares, o mercado da água, segundo as críticas, envolve não só a sede de lucros das transnacionais, mas a conivência de organismos internacionais, entre eles o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas, no progressivo processo de privatização das águas em um possível cenário de escassez - até 2025 de 2 a 7 milhões de pessoas em pelo menos 48 países podem sofrer com a falta de água - de acordo com relatório divulgado pela Unesco, órgão da ONU responsável pelo Programa Hidrológico Internacional.
Em âmbito regional, a questão da água demonstra um avanço político - dos conflitos em função da disputa pela primazia no Cone Sul para uma estratégia compartilhada de avanço - que melhorou sensivelmente o relacionamento entre os países, como demonstra a construção do Mercosul, apesar de avançar a passos mais lentos do que o desejável.
Apesar de aflorarem as divergências diárias, na maior parte das vezes concentradas em questões econômicas e políticas, em 2001 os Governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, reunidos em Foz do Iguaçu, iniciaram um processo de negociação que em 2003 culminou com a execução do Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani, que tem o Banco Mundial como agência implementadora dos recursos, a Organização dos Estados Americanos como agência executora internacional e o Fundo Mundial para o Meio Ambiente como principal agente financiador do projeto. Além dos organismos já citados, a Agência Internacional de Energia Atômica, e o Serviço Geológico da Alemanha participam como co-financiadores.
O objetivo é apoiar os quatro países envolvidos na elaboração e implementação de um modelo institucional, legal e técnico comum para a preservação e o gerenciamento sustentável do Sistema Aquífero Guarani. O projeto está organizado em sete componentes que compreendem desde sua coordenação e gestão até a estruturação do marco de gestão integrada, passando pela expansão e consolidação do conhecimento científico e técnico; pelo fomento à participação pública, comunicação social e educação ambiental; pela avaliação, seguimento e disseminação dos resultados do projeto; pelo desenvolvimento de medidas de mitigação de danos causados por usos insustentáveis; e finalmente pela avaliação do potencial para utilização da energia geotérmica.
Todos os componentes estão organizados de forma a fornecer os elementos necessários para a construção do marco comum de gestão, que se estrutura especificamente em mais cinco elementos que envolvem o aperfeiçoamento e a instrumentação de uma rede integrada de monitoramento e informação do Sistema Aquífero Guarani, a formulação de um programa de ações estratégicas, o fortalecimento institucional e uma análise diagnóstica transfronteiriça.
A articulação entre os quatros governos se dá, em instância máxima, através de um Conselho Superior de Direção do Projeto composto obrigatoriamente por representantes das Unidades Nacionais de Execução do Projeto, Ministérios de Relações Exteriores e outro representante de livre escolha dos países, preferencialmente vinculado à área ambiental. Há também uma Coordenação Colegiada formada pelos coordenadores técnicos nacionais que atua em apoio ao Conselho e à Secretaria Geral, que é administrada pela Organização dos Estados Americanos através de sua Unidade de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente. Por fim, cada país tem uma Unidade Nacional de Execução do Projeto responsável por sua implementação.
Enquanto as questões de natureza ambiental concernentes ao Aquífero Guarani são claramente interdependentes, somente parcialmente as questões econômicas, políticas e sociais apresentam essa mesma característica, entretanto, determinados elementos não escapam da condição natural e ampliam a agenda do projeto.
Dessa forma, é interessante distinguir algumas categorias analíticas propostas por Robert O. Keohane e Joseph Nye. “A interdependência refere-se a situações caracterizadas por efeitos recíprocos entre países ou atores em diferentes países”. Ela implica necessariamente na noção de custos e de restrição da autonomia, não implica em ausência de conflitos distributivos ou mesmo em benefícios mútuos, ou seja, envolve competição e assimetrias.
Há evidentemente na discussão sobre a água uma dimensão global e uma regional. O reconhecimento de sua importância é fatídico e provoca uma série de controvérsias desde aqueles que sustentam a universalidade do direito humano ao seu acesso, até os que defendem a sua privatização e mercantilização irrestrita.
Nos países em desenvolvimento, qualquer projeto que envolva gasto público além do estritamente necessário para o abastecimento da população e da indústria, geralmente envolve expectativas de ganhos econômicos com entrada de divisas ou aumento de competitividade.
No Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani, essas duas dimensões têm a potencialidade de fundir-se e os choques e conflitos em torno do tema, de se ampliarem.
Nesta direção, observa-se que, apesar da discrepância dos marcos jurídicos nos quatro países, o Brasil já adota um modelo no qual se permite a participação da iniciativa privada. Um marco de gestão conjunta deve universalizar essa diretriz. A princípio, pode-se esperar que o enfoque seja o gerenciamento dos sistemas de captação, distribuição, e tratamento de águas e esgotos, entretanto, nada impede que se avance até a agroindústria e o turismo em uma perspectiva capaz de colocar os Estados em uma situação de franca competição pelos investimentos.
Por outro lado, as características intrínsecas do Sistema Aquífero Guarani convergem para uma situação caracterizada por negociações reiteradas e de longo prazo, nas quais a agenda tende a se modificar na medida em que surjam os conflitos. Com a redução dos custos de verificação das obrigações dos governos e, ao mesmo tempo, aumento dos custos de transgressões acerca-se de um cenário estável no qual a estratégia dominante é a cooperação, mesmo que eventualmente os preceitos acordados sejam transgredidos.
Ainda acerca da interdependência, Keohane e Nye distinguem duas dimensões: a sensibilidade e a vulnerabilidade. Ambas referem-se a mudanças nas políticas locais em função de algum fator externo, entretanto o último conceito agrega a noção de custos sócio-políticos ou econômicos. Em certa medida, a questão da água tem transitado de uma situação de sensibilidade para vulnerabilidade que aponta em duas direções: o fortalecimento de um sistema regional pautado no interesse dos Estados ou um sistema híbrido refém fundamentalmente do capital estrangeiro.
Essa última não é uma perspectiva interessante para os países envolvidos no projeto, mas para aqueles cuja disponibilidade hídrica é muito restrita. De acordo com Lester Brown em artigo para o Lê Monde Diplomatique, 70% de toda água disponível para o consumo no planeta é utilizada na produção de alimentos, 20% em processos industriais e somente 10% para abastecimento populacional. A partir desses dados, o cruzamento do cenário de crescimento populacional com o de escassez hídrica indica que os países nos quais a disponibilidade de água é restrita tenderão a trocar a produção de alimentos pelo abastecimento populacional, o que sugere um aumento de pressão sobre as áreas agricultáveis com disponibilidade hídrica. Na prática, utiliza-se o alimento, que a cada tonelada equivale a mil toneladas de água, como intermediador da troca.
A ampliação das relações de interdependência em torno do tema faz com que o projeto ultrapasse os limites de uma experiência de construção conjunta de marcos supranacionais de gestão. A confirmação dos cenários de crescimento populacional e restrição hídrica tendem a trazer a tona temáticas como segurança alimentar e soberania nacional.
A médio-longo prazo, o relaxamento das barreiras não tarifárias no âmbito da Organização Mundial do Comércio parece inevitável. Neste sentido é interessante observar o comportamento das grandes transnacionais no que parece ser uma concessão silenciosa de mercados: alimentos por água.
Citações
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Referências
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