História Sumária do Racismo no Brasil (Primeira Parte)

12/04/2011 23:51

 

História Sumária do Racismo no Brasil (Primeira Parte)

 

 

Publicado por LUTA PELA EDUCAÇÃO em 21 dezembro 2010, às 9:37, em INCLUSÃO SOCIAL

 

Mário Maestri

 

1. Constituição e Racionalização da Escravidão Clássica

 

A desqualificação dos oprimidos é recurso histórico, consciente e inconsciente, dos opressores para racionalizar e consolidar a exploração. Nas formas de produção pré-capitalistas, essa desqualificação centrou-se fortemente na natureza dos explorados. No clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, Frederico Engels assinalou a dominação da mulher pelo homem, no contexto da primitiva divisão sexual do trabalho, como a primeira forma geral de exploração. "[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino." A opressão da mulher ensejou e apoiou-se tradicionalmente na defesa de sua inferioridade, fortemente ancorada na sua diversidade fisiológica em relação ao homem. O magnífico Aristóteles apontava como exemplo da inferioridade feminina o fato de que a mulher teria menos dentes que os homens!

 

Base da produção na Grécia homérica, a escravidão patriarcal surgiu quando o produtor superou sistematicamente suas necessidades de subsistência, produzindo sistematicamente excedente capaz de ser apropriado pelo explorador. A orientação da produção para o consumo do núcleo familiar da pequena propriedade grega, de uns cinco ou pouco mais hectares [oikos], pôs relativamente travas à exploração do homem e da mulher escravizados. Não havia sentido em produzir acima do consumido pelos proprietários, familiares, dependentes e cativos. No escravismo patriarcal, o proprietário, sua família e dependentes trabalhavam comumente ao lado do cativo, em proximidade que apenas minimizava o caráter despótico daquela relação social de produção.

 

Com a consolidação da propriedade privada sobre a terra e seus frutos e a expansão do mercado, a escravidão patriarcal desenvolveu-se e superou-se qualitativamente. Ainda que fossem numerosas as pequenas propriedades escravistas de subsistência, nos dois séculos finais da República e nos dois primeiros do Império, dominou social e economicamente a pequena propriedade escravista pequeno-mercantil especializada. Orientada essencialmente para o mercado, a villa tinha em torno de uns dez a trezentos hectares e trabalhava com algumas poucas dezenas de cativos. A dimensão reativamente restrita e o caráter dos seus produtos, que exigiam comumente trabalho intensivo, especializado e sazonal, impediram tendencialmente a degradação das condições do trabalho conhecida séculos mais tarde na escravidão colonial americana. Era monótona e dura a existência do produtor escravizado nessas propriedades.

 

Por variadas razões, fracassou a evolução da produção pequeno-mercantil em escravismo mercantil, ou seja, em grandes propriedades trabalhadas por dezenas e centenas de cativos, voltada essencialmente para o mercado, tentada em diversas regiões, com destaque para as propriedades triticultoras da Sicília. Sob a forte pressão dos produtores escravizados, abriram-se as portas à longa transição ao colonato e, a seguir, à produção feudal. Nesta última, o produtor não era mais, como anteriormente, propriedade plena do explorador. Sob a obrigação de pagamento de rendas delimitadas, ele passou a controlar sua família e seus instrumentos de trabalho e a gerir relativamente a gleba à qual era adstrito. Essa importante evolução histórica não o emancipou imediatamente da servidão pessoal parcial [servidão da gleba]. A escravidão plena, menos produtiva e mais custosa, manteve-se como relação de dominação subordinada na Europa, em alguns casos, até o século 18.

 

A violência foi sempre a principal forma de submissão do trabalhador na escravidão patriarcal e pequeno mercantil. Os cativos e cativas tidos como relapsos e desobedientes eram forte e exemplarmente castigados. Os atos de rebelião contra os proprietários e seus familiares e os feitores eram punidos com a tortura e a morte. Não raro, os cativos rebeldes eram queimados vivos. No Império, quando a escravaria urbana dos romanos mais ricos podia superar os cem membros, o receio dos proprietários à resistência do cativo chegou ao paroxismo. Lei romana dos primeiros anos de nossa era determinou que, se um proprietário escravista [pater famílias] ou seu familiar fossem assassinados, todo cativo que, encontrando-se a uma distância em que pudesse ouvir seu pedido de ajuda, não o socorresse, seria torturado e executado. Nos tempos de Nero, Padânio Secondo, prefeito de Roma, foi justiçado por cativo que lhe pagara e não recebera a manumissão. Todos seus quatrocentos cativos, de ambos os sexos e das mais variadas idades, foram executados, apesar da agitação que a terrível medida causou entre a plebe romana formada em boa parte por libertos.

 

A escravidão apoiou-se também na submissão ideológica dos cativos. Entre os múltiplos mecanismos utilizados, destacava-se o convencimento do cativo – de dos escravizadores − da natureza diversa e inferior do subordinado, proposta que racionalizava e consolidava a ditadura dos escravizadores sobre os escravizados.

 

2. A Racionalização da Exploração Escravista na Antiguidade

 

Na Grécia homérica, a escravidão era vista inicialmente como decorrência dos azares da sorte – guerra, captura, dívida, etc. A visão platônica expressava já uma época em que a escravidão tornara-se instituição importante. Para Platão, a servidão de um indivíduo ou de um povo devia-se à incapacidade de se autogovernar, por falta de discernimento intelectual, cultural ou moral, qualidades exclusivas ao mundo, cultura e homem helênicos. Porém, para ele, era a lei que determinava quem era escravo e senhor. Entretanto, sua teoria da superioridade da alma sobre o corpo consubstanciava já a visão da submissão necessária do súdito ao soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador.

 

A visão aristotélica da escravidão nasceu em sociedade solidamente escravista. Para Aristóteles, era inaceitável que um homem fosse submetido e mantido na escravidão apenas pela força, sancionada pela lei. O que apontava igualmente ao cativo a força, como forma de emancipação possível. Aristóteles superou a tese platônica, ao defender raiz natural e, portanto, genético-racial à servidão. Para ele, a reunião de diversas famílias formava o burgo e a associação de diversos burgos, a cidade, ou seja, a sociedade política. Um processo determinado pela natureza que compelia "os homens a se associarem" na procura do "fim das coisas", a felicidade de todos.

 

Para Aristóteles, a família "completa", unidade de base da sociedade, forma-se por homens livres e escravizados. Para ele, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, pois o melhor "instrumento" era o que serve para "apenas" um "mister", e não para muitos. Essa visão expressava uma consciência, ainda que limitada e alienada, do avanço da produção social através da divisão e especialização do trabalho e de seus instrumentos. Assim, na consecução de fins comuns, seres de essência diversa complementavam-se, cada qual realizando a função para que fora criado pela natureza, na consecução do bem comum. Os mais elevados comandavam os menos perfeitos. "A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar."

 

A natureza determinava que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo.

 

"[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens." "Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar, deve, forçosamente obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo."

 

Fundando o direito da servidão na inferioridade natural e não na força, Aristóteles consolidava ideologicamente a ordem escravista grega, impugnando a escravização do heleno, por um lado, e a validade-direito do bárbaro de emancipar-se pela força, por outro. Propunha que oprimidos e opressores se associariam na consecução de objetivos comum, pois, sendo a opressão algo própria da ordem natural, não haveria civilização à margem da mesma. Foi sempre estratégia recorrente dos opressores defender não apenas a justiça mas também a bondade social de opressão.

 

Aristóteles foi mais longe, ao propor que a especialização natural, ou seja, a inferioridade e superioridade, se expressasse na própria constituição dos seres. A inferioridade dos "animais domésticos", que serviam com a "força física" ao dono nas suas "necessidades quotidianas", como o boi, o asno, etc., registrava-se nos seus corpos de brutos, especializados para tais funções. O mesmo ocorria entre os homens, pois a "natureza" pareceria "querer dotar de características diferentes os corpos dos homens livres e dos escravos." "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem". Os homens incapazes de outra função que as relacionadas à "força física" eram "destinados à escravidão".

 

A proposta de registro material da superioridade ou da inferioridade naturais dos homens constituía elemento central na racionalização aristotélica da exploração escravista, retomada plenamente no mundo romano, e, mais tarde, na Idade Média e Moderna. A força desta proposta encontrava-se no registro, indiscutível, nos corpos, da inferioridade da alma. O que tornava materialmente visível a comprovação de hierarquização social natural, com homens superiores, destinados a mandar e serem servidos, e homens inferiores, destinados a obedecer e a servir. Porém, tal proposta materializou-se em forma limitada no mundo grego, por falta de condições objetivas nas quais pudessem se apoiar as fantasmagorias dos escravizadores.

 

Mesmo no mundo grego tardio, os cativos provinham sobretudo das províncias e regiões periféricas do mundo helênico. Portanto, havia forte identidade étnica entre os grupos étnicos dos amos e o dos cativos. O que dificultou a tentativa permanente de apontar traços somáticos que expressassem as naturezas diferenciais, superiores e inferior, dos escravizadores e dos escravizados. Ainda que condições de vida diversas tendam a diferenciar fisicamente, em forma relativa, explorados e exploradores, mesmo de mesma origem étnica.

 

Inicialmente, a escravidão romana apoiou-se na escravização de povos itálicos, de forte semelhança étnico-somática, o que impedia a plena realização do princípio aristotélico da expressão física da inferioridade natural do cativo. Com a extensão da escravidão, foram feitorizados infinidade de povos da bacia do Mediterrâneo e da Europa Ocidental, Central e Oriental. A diversidade étnico-linguística dessa população escravizada dificultou, também, o procurado registro fenótipo da pretensa natureza humana inferior do escravizado. No Império, a retórica aristotélica foi igualmente debilitada pela expansão da cidadania e da classe dos grandes escravistas para além do núcleo étnico romano.

 

A sociedade romana enfatizou a cultura e a língua como elementos diferenciadores, ainda que os múltiplos traços fenótipos dos cativos fossem apontados como registro de inferioridade. É de geral conhecimento a descrição de escravista romano, com propriedade na Magna Grécia – um italiano meridional, nos dias de hoje –, dos traços semi-bestializados de seu cativo germânico. Ou seja, um alemão atual. Sequer renascimento ibérico da escravidão, com a Reconquista, produziu identificação cabal e duradoura entre etnia e escravidão. Tal fenômeno materializou-se plenamente quando do renascimento do escravismo, nas Américas, dando origem à desqualificação essencial do africano subsaariano, base das visões racistas antinegro contemporâneas.

 

3. A Escravidão de Mouros e Pretos em Portugal

 

 

As práticas e concepções escravistas foram introduzidas na Península Ibérica pelas legiões romanas vitoriosas e, mais tarde, mantidas pelos dominadores visigodos como forma de dominação subordinada. Em 711, os muçulmanos atravessaram o estreito de Gibraltar, mantendo-se na Ibéria até a perda definitiva de Granada, em 1492. A luta à morte entre cristãos e muçulmanos pela península enfatizaria fortemente a escravidão. Inicialmente, os conquistadores cristãos passavam no fio da espada as populações muçulmanas derrotadas. Logo, apenas os guerreiros eram eliminados, reduzindo-se à escravidão os restantes. As necessidades da exploração das terras conquistadas, em boa parte despovoadas pela guerra, ensejaram que razias fossem lançadas sobre os territórios muçulmanos para capturar trabalhadores a serem explorados nas cidades e campos. Difundiu-se também a captura e venda de muçulmanos assaltados no Mediterrâneo e nas costas da África do Norte. Os muçulmanos procediam do mesmo modo com os cristãos.

 

A Reconquista teria melhorado a sorte dos servos pessoais originais, metamorfoseados em servos da gleba e a seguir em colonos livres. Decaiu igualmente a importância dos antigos cativos e fortaleceu-se a dos cativos islamitas. A retórica justificadora da feitorização do muçulmano rompeu radicalmente com a racionalização aristotélica da escravidão. A escravidão do muçulmano não se devia mais a uma pretensa inferioridade natural. A excelência da civilização islâmica mediterrânica e a forte identidade étnica, sobretudo entre o muçulmano ibérico e o moçárabe, ou seja, cristão arabizado pela vida na Ibéria islâmica, impediam propostas de inferioridade natural do cativo muçulmano. Agora, a escravidão era justificada pela adesão a uma crença que ofendia gravemente o verdadeiro deus, nos céus, e devia, portanto, ser castigada, na terra. Era a guerra justa contra o inimigo da fé divina, determinada pelo Estado e pela Igreja, que justificava a escravidão, em proveito dos homens pios, é claro. No fundamental, o mesmo critério apoiava a escravidão de cristãos pelos muçulmanos. Entretanto, no mundo ibérico, cativos cristãos seguiam sendo escravizados por senhores cristãos, ainda que em número decrescente.

 

No mundo romano, o trabalhador escravizado era denominado sobretudo de servus. A dissolução e a metamorfose das relações escravistas foram tão lentas e imperceptíveis que o produtor direto emergiu no mundo feudal sendo tratado do mesmo modo que os antigos cativos nas línguas européias– servus, servo, serf, etc. No século 10, quando da retomada relativa do escravismo na Europa Ocidental, foi necessária uma nova designação para o trabalhador escravizado. As guerras de Otão I [912-973], o Grande, duque da Saxônia, inundaram a Europa com cativos trazidos da Esclavônia, nos Bálcãs. Com o passar dos anos, o termo escravo perdeu o sentido étnico-nacional, ou seja, originário da Esclavônia, para descrever o homem escravizado. Ou seja, o servus da Antiguidade. Na Lusitânia, o uso do designativo escravo foi tardio.

 

Até meados do século 15, a dominância da escravidão de muçulmanos levou a que o termo português substitutivo de servus fosse mouro, pois os muçulmanos que invadiram e colonizaram a península Ibérica provinham da Mauritânia [Saara Ocidental]. Logo, em Portugal, o muçulmano feitorizado era designado de "mouro", não importando de onde viesse, na bacia do Mediterrâneo. Em 1444, começaram a chegar a Portugal as primeiras partidas de negro-africanos, capturados quando do avanço marítimo lusitano ao longo do litoral atlântico da África. Por longas décadas, mouros e negro-africanos trabalhariam como cativos, lado a lado, em Portugal, nas cidades e nos campos. O neologismo português mourejar designaria o trabalho duro como cativo mouro ou, mais tarde, como cativo negro.

 

Em Portugal, a palavra negro era usada para designar o homem de pele mais escura, livre e escravizado. Como o negro-africano era ainda mais escuro, foi designado diferencialmente de "preto". Daí, ser chamado de "mouro preto", sem ser proveniente da Mauritânia e muçulmano. Em inícios do século 16, quando a escravidão do negro-africano se sobrepunha já claramente à feitorização do muçulmano, o uso da palavra escravo difundiu-se em Portugal, já sem qualquer referência à religião e à origem nacional. Então, tínhamos "escravo mouro", "escravo negro", "escravo preto", "escravo branco". Em Portugal, com a forte dominância da escravidão do negro-africano, "preto" tornou-se sinônimo de cativo e de escravo. Nesse novo contexto, a visão aristotélica da escravidão, como consequência de pretensa inferioridade natural, foi retomada e enfatizada como jamais, como a principal justificativa daquela instituição. A pele branca seria sinal de excelência, a negra, de inferioridade. Nascia o racismo anti-negro.

 

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