Tempo de vingança
Correia da Fonseca
31.Out.11
https://www.odiario.info/?p=2259
O linchamento bárbaro de um chefe de estado perante as câmaras da TV e a distribuição dessas imagens pelo mundo inteiro para sua insistente divulgação é uma acção repugnante que mesmo alguns adversários de Kadhafi têm reprovado. Que tresanda a uma vingança pelo «crime» do assassinado ter cometido o sacrilégio de desobedecer ao poder «ocidental». Que decerto fará com que alguns de nós, europeus, supostamente civilizados e civilizadores, nos envergonhemos pela parte que a televisão portuguesa quis ter nesta específica obscenidade.
1. Foi, na passada semana, uma espécie de orgia voyeurista e tendencialmente sádica: dezenas de vezes foram passadas na televisão portuguesa, como muito provavelmente na TV de outros países muito desenvolvidos e civilizados, as imagens finais de Moamar Kadhafi, ensanguentado e agonizante, a ser linchado pelos democratas patrocinados formalmente pela União Europeia com o consentimento da ONU. Em sei que Kadhafi era feio, extravagante no trajar e, ao que consta, pouco dado às práticas democráticas recomendadas no seio da Aliança Atlântica e seus arredores. Mas não é nítido que fealdades e extravagâncias devam incorrer na pena de morte sob tortura com imagens a distribuir por todo o mundo em diferido (o directo não terá sido possível por motivos exclusivamente técnicos) e, quanto à falta de democraticidade, é sabido que os países de conduta exemplar não terão de se fatigar muito em buscas para encontrar entre os seus aliados e amigos um bom punhado de dirigentes nacionais que não diferem do falecido coronel em matéria de brutalidades e práticas a condizer. Em verdade, a fundamental diferença entre um e outros é que Kadhafi não contava com a simpatia dos Estados Unidos e seus satélites, carência que a História recente já demonstrou que tende a ser fatal. Notemos que uma espécie de epidemia sui generis tem vindo a ceifar indivíduos de quem Washington e/ou amigos não gostavam: sem recuarmos ao assassínio ignóbil de Patrice Lumumba e à liquidação de Eduardo Mondlane, lembremo-nos de Salvador Allende e, em tempos recentes de Saddam Hussein e de Bin Laden. Embora longe de se garantir que esta curta enumeração esteja completa, parece certo que afrontar os grandes e consagrados valores do Ocidente, isto é, os seus interesses, não faz nenhum bem à saúde.
2. Voltemos, porém, a Kadhafi e à sinistra exibição dos seus últimos momentos. Diz-se reiteradamente que o homem era um bruto e é mais que provável que o fosse. Mas diz-se também, embora sejam outras as fontes e se trate de dados generalizadamente omitidos pelos media que alimentam a nossa quotidiana visão do mundo, que a Kadhafi deveu a Líbia algumas benfeitorias interessantes. Que a ONU reconheceu em 2007 que a Líbia apresentava «o maior índice de desenvolvimento humano de toda a África», seja lá isso o que for. Que o ensino universitário era totalmente gratuito na Líbia. Que era sistemático e amplo o apoio aos estudantes universitários líbios nos Estados Unidos e na Europa. Que jovens casais recebiam um subsídio estatal da ordem dos 50 mil dólares por altura do casamento. Que assistência médica era na Líbia totalmente gratuita (ou apenas tendencialmente, mas a sério, não sei). Que a banca pública concedia empréstimos sem juros a cidadãos líbios quando o financiamento solicitado se destinava a aplicação coincidente com os objectivos do interesse nacional ou da efectiva elevação do nível de vida dos cidadãos. Que estava em curso, ou mesmo já realizado, o maior sistema de irrigação do mundo a fim de se conseguir a transformação de desertos em áreas cultiváveis. Mesmo que só metade desta enumeração corresponda inteiramente à verdade, é difícil recusar o mérito das iniciativas.
3. Pois sim, dir-se-á, mas Kadhafi usava o dinheiro do petróleo. É verdade. Mas dinheiro do petróleo há também, e em enormes quantidades, em estados do Médio Oriente acerca dos quais não há notícia de substanciais aplicações no bem-estar e promoção dos cidadãos e onde o poder é também exercido de forma tirânica. Aliás, como bem se sabe, isto de tiranias, ditaduras e correlativos é uma questão bem mais complicada do que pode parecer, sendo certo que nessas matérias muitos são os amigos & protegidos dos Estados Unidos que chumbariam num exame mesmo sumário e superficial. Para lá de tudo isto, porém, bem podemos e devemos regressar ao ponto inicial desta crónica: o linchamento bárbaro de um chefe de estado, generalizadamente reconhecido como tal, perante as câmaras da TV, e a distribuição dessas imagens pelo mundo inteiro para sua insistente divulgação. É uma acção repugnante que mesmo alguns adversários de Kadhafi têm reprovado. Que tresanda a uma vingança pelo «crime» do executado ter cometido o sacrilégio de desobedecer ao poder «ocidental». Que decerto fará com que alguns de nós, europeus, supostamente civilizados e civilizadores, nos envergonhemos pela parte que a televisão portuguesa quis ter nesta específica obscenidade.