Um fundo mundial para a água

08/06/2011 00:49

GLOBALIZAÇÃO

https://diplomatique.uol.com.br/acervo.php?id=951&tipo=acervo

01 de Novembro de 2003

 

Diante dos discursos vazios e do desinteresse dos organismos internacionais e dos governos dos países do hemisfério Norte, cabe aos cidadãos do mundo inteiro mobilizarem-se para criar um Fundo Mundial de Cooperação para a Água

 

por Ricardo Petrella

 

    As declarações mais recentes das Reuniões de Cúpula internacionais (Nova York, Monterrey, Johannesburg, Evian, Kyoto) sobre a "prioridade" a ser dada ao acesso à água para os 1,2 bilhão de seres humanos que dela são privados não desembocaram em nenhuma medida concreta séria. Quanto às multinacionais que haviam feito desta "prioridade" um ingrediente da construção de sua "imagem", ainda se continua esperando delas um mínimo de financiamento desinteressado. A oligarquia mundial não vai fazer "milagres"? Cabe, então, aos cidadãos a criação de condições para uma mobilização popular pelo financiamento público do direito à água para todos, no máximo até o ano 2020 [1]. Um Fundo Mundial de Cooperação para a Água deveria ser criado e financiado conforme apresentado abaixo.

 

1 - Através de um sistema fiscal geral, graças à dotação de 0,01 % do Produto Interno Bruto (PIB) dos países membros da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE), montante estimado em 33 trilhões de dólares. Isto se traduziria em entradas de mais de 3 bilhões de dólares por ano.

 

Os bilhões dos "cêntimos"

 

2 - Através de um sistema fiscal especificamente concebido para a água, e tomando a forma de 3 "cêntimos":

 

- o "cêntimo da paz": um cêntimo por dólar gasto em armamento seria recolhido pelo Fundo, o que se traduziria numa receita de cerca de 9 bilhões de dólares por ano;

- o "cêntimo por outro tipo de consumo": um cêntimo de euro seria retirado de cada garrafa de água mineral vendida. Na verdade, em todos os países a água é propriedade pública, mas sua gestão foi transferida para o capital privado que, sozinho, aufere todos os benefícios importantes desse setor em rápida expansão;

- o "cêntimo da solidariedade": seria cobrado um cêntimo de euro sobre cada metro cúbico de água potável. Esta medida, já em vigor na região da Toscana, na Itália, liberaria cerca de 1 bilhão de euros de receitas que poderiam ser utilizadas para o financiamento de iniciativas visando a aumentar o número de pessoas com acesso à água nos países em desenvolvimento.

 

Cooperativas e solidariedade

 

Um cêntimo seria arrecadado por garrafa de água mineral vendida que, embora sendo propriedade pública, teve sua gestão transferida para o capital privado

 

3 - Através da anulação imediata da dívida pública dos países mais pobres e mais endividados. Desta forma, recursos consideráveis seriam liberados para o financiamento das atividades essenciais ao direito à vida de todos os habitantes.

4 - Através da criação de cooperativas de crédito locais, nacionais, internacionais e mundiais, com a finalidade de recolher a poupança local e mundial para financiar os investimentos públicos (e privados) indispensáveis para o acesso de todos aos bens e serviços comuns essenciais à vida individual e ao "viver junto". A água é, com toda a certeza, o domínio a partir do qual experiências inovadoras de criação de instrumentos financeiros de natureza cooperativa e de mutualismo poderiam ser promovidas, desenvolvidas e generalizadas. Tratar-se-ia, mutatis mutandis, de fazer crescerem na África, na Ásia, na América Latina, bem como nos países desenvolvidos, novos tipos de instrumentos financeiros comparáveis ao Movimento das Caixas Populares Desjardins no Quebec, no período de 1960 a 1980, à gestão cooperativa realizada na cidade de Curitiba, no Brasil, às mutualidades operárias e camponesas do século XIX na Europa, às cooperativas de consumo, como as atuais coop na Itália, para se limitar a alguns exemplos.

5 - Através das economias realizadas, tanto no Norte quanto no Sul, por uma gestão eficaz das infra-estruturas existentes.

 

O acesso à água como bem comum

 

Um cêntimo seria cobrado por cada metro cúbico de água potável, medida que já vigora na Itália e que representaria cerca de 1 bilhão de euros

 

    Numa primeira fase transitória, o Fundo Mundial de Cooperação para a Água deveria ser colocado sob a égide de um Conselho de Segurança econômica e financeira a ser criado no âmbito atual da ONU. Posteriormente, ele deveria ser gerenciado sob a responsabilidade de uma Autoridade Mundial da Água, parte integrante da Organização Mundial do Desenvolvimento Humano e Social, destinada a integrar e a substituir a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

    Não há nenhuma necessidade de esperar essas mudanças radicais do sistema institucional mundial para fazer avançar a realização do direito à água para todos antes de 2020. O Fundo pode, realmente, ser criado desde hoje, sem que seja preciso assinar uma convenção internacional. Cooperativas de crédito, fundos mútuos, bancos cooperativos, coletividades locais podem, desde já, tomar iniciativas no sentido indicado acima.

    O Fórum Social Europeu de Paris/Saint-Denis/Bobigny/Ivry poderia representar a oportunidade de constituir o primeiro pilar desse Fundo para a criação de um fundo cidadão para a água. No próximo dia 10 de dezembro, em Roma, cerca de sessenta parlamentares, políticos locais e representantes de movimentos sociais do mundo inteiro se encontrarão para proclamar "o acesso à água como um bem comum e um direito humano, universal, individual e imprescritível". As verdadeiras "revoluções" não esperam o imprimatur dos poderosos. A história ensina que as grandes conquistas em matéria de direitos humanos e sociais sempre forma realizadas contra e apesar das oligarquias instaladas.

 

(Trad.: Iraci D. Poleti)

 

 

 

[1] - Ler, de Mohammed Larbi Bouguerra, Les Batailles de l?eau. Pour un bien commun de l?hu