Virada Cultural
Ivan
Dia esquisito, acordo sem sono umas dez da manhã, e sem ressaca apesar de ter ido dormir de manhãzinha após ter conhecido uma bonita moça: mãe aos 18, filha de 18 e feliz da vida com sua netinha. Açoriano me liga e me chama pra balada; Virada Cultural e ainda estou em São José dos Campos. Digo que vou encontrá-lo e ao Baco, mas que não estou disposto para a festa, a Virada já não me agrada tanto.
Relembro por um instante dos shows promovidos pelos governos Erundina e depois pela Marta no Anhangabaú nas sextas, e nos domingos no Ibirapuera. Toda semana, ao longo dos anos. Cerveja gelada e barata, botecos sujos, mas não imundos. Cenário louco e organizado. Caetano, Gil, Ratos do Porão, Geraldo Azevedo, Gal, Titãs, Cássia Eller, Bethânia, The Mamas and The Papas. Faz anos já, tempos imemoriais. O povo com cartazes, “Stevie Wonder, amamos você”, enquanto o velhinho cego arranhava no piano.
Na estrada Açores me liga de novo, se eu estava por perto, que iríamos para casa do Equilibrista, no Centro e depois baladar. Momentos depois dei bom-dia pra SP e ela me recepcionou com um sol escaldante e um congestionamento de três quilômetros na Tietê. Velocidade média: 9. Há um século as charretes paulistanas eram mais rápidas e o ar era mais puro... Uma hora e meia e cheguei no Paraíso, em consolação.
Deixo o carro na garagem e vou encontrá-los logo ali perto, no Metrô. No caminho Baco me conta as últimas novidades, a linha vagalume. Faz um bom tempo que não pego metrô, nos últimos tempos minha vida tem se resumido ao circuito casa, USP, casa, SJC, casa. A linha é a amarela: estreia com vinte anos de atraso, e funciona das 9 às 3, como se fosse um banco que funcionasse mais cedo. Talvez seja mesmo, a passagem aumentou. Pensei na Cidade do México, 32 milhões de pessoas, 400 km de metrô, na última leitura que fiz há uns 15 anos. Preciso me atualizar com o Mexicano.
Casa do Equilibrista, recepção das melhores: cerveja e conversas surreais. Manual de Civilidade..., redução por absurdo e risadas. Dali, paramos não sei onde, passando a República, para beber. Vindo de um show brega, um tal de Fernando, que ninguém conhecia, chegou até nós, apresentou-se e disse ser professor de História e que deveríamos nos conhecer, afinal era para isso que servia a Virada. Sim, um Facebook mais interativo...
Descobri os banheiros químicos, afinal... ; caminhando de volta para a roda, Sônia amiga do Equilibrista se apresentou. Senhora, uns 60 ao mais, professora doutora de Sociologia, do Cefet-SP (hoje, segundo ela, com outro nome), formada em idos de 70, um crânio e porra-louquíssima. Agora, porque cantava, somente bebia cerveja quente; era a terceira pessoa que conhecia que fazia isso. Recordei do Paulão, amigo das antigas, psicólogo e funcionário público para sobreviver, soprano oficial da Orquestra Sinfônica de SP e do Jobi, professor, louco e cantor de Ópera. Fernando então me disse:
− Como vai São José?
Não entendi a pergunta. Depois me disse que morou lá treze anos, que era professor do Anglo, que deu aulas no Poliedro, falou-me do Moisés etc. e tal. Continuou então dizendo que aquele show era maravilhoso, que ele achava o cantor formidável e que a gente deveria assisti-lo, e que se não quiséssemos ele iria voltar para lá. Não entendi a interação.
Fomos em direção ao show do mexicano famoso, há uns três quarteirões pra frente, espécie de Roberto Carlos com Pablo Milanés, e romântico no último. No caminho, a surpresa: Rita Lee. Tiração, e como sempre irreverente. Vestida com uma saia curtíssima de festa, com aqueles babados sustentados por uma armação de metal, fez questão de mostrar a que veio ao se virar: dar esclarecimento para a mais representativa virada cultural... a cara de São Paulo.
No mexicano, a cerveja agora havia passado de uma lata por 3,50 para uma garrafa por 3, e por isso encostamos no mercadinho em frente, com direito a banheiro. Bêbado, o Equilibrista se foi. Pádua, que não via há uns dois anos surgiu e por aí ficamos praticamente o resto do show. Estava fazendo Sociologia e sendo gentleman, cingiu e levou Sônia pra casa, um tempo depois. Igor apareceu, também Mineirinho e Vampeta. E o show seguinte salvou meu dia, uma banda psicodélica de Nova Iorque, espécie de Manu Chao com Bob Marley, com toques de cumbia cusquenha e com chicha peruana amazônica. Formidável, mesmo.
Pizza na madrugada e o Igor contribuiu com a distribuição de renda alheia, cedendo distraída e gentilmente 250 pilas, documentos etc. O alheio, feliz, agradeceu o show. Foi-se e eu também já estava cansado e naquela confusão do centro que a cada hora aumentava mais, a ponto de perdemos o Baco. Açoriano ficou e resolvi ir dormir em sua casa.
Volta ao Paraíso e agora história recomeça. Sentado no ponto de ônibus defronte ao metrô e entre a Igreja Ortodoxa e o prédio do Açoriano apreciava a praça deserta e silenciosa e pensava na vida. Uma hora da manhã. Nisso conheci Geraldo, uma figura alegre e incomum, que por opção era um catador de latas.
Contou-me sua vida, disse-me que estava com 60 anos e que aquilo o ajudava e a esposa, ambos aposentados. Dei corda. Falou-me de seu trampo antigo, que já não me lembro, mas que era trabalho humilde, mas o mais admirável foi que apesar de suas dificuldades conseguiu que seus três filhos se formassem no ensino superior. Um deles era engenheiro e doutor, e morava na Alemanha há três anos, em Dresden, se não me engano. Sua filha era professora de universidade e seu outro filho havia se formado não-sei-noquê, mas que os três ajudavam aos pais sempre que podiam. Conversamos por mais de uma hora, sobre sonhos e esperanças, sobre trabalhos e realizações. Despediu-se emocionado e fiquei ali, tanto quanto, a pensar que aquilo sim era interação e a verdadeira virada cultural.
Quando de repente passou a minha frente uma mulher: a mulher. Linda, cabelos encaracolados curtos e negros, colo longo, moreno e perigoso, boca ardente. Linda como o amor a quem arrendaria meu corpo em outras quadras e consortes, como nos antigos versos de Quintana: “Quando duas pessoas fazem amor / Não estão apenas fazendo amor / Estão dando corda ao relógio do mundo”. E no entanto de outras épocas, o sino da Igreja copulava em canções da abóbada celeste, o mistério da terra, a doação, a fraternidade sem pejo ou rubor, a delícia assegurada do seu sexo, as más línguas, o delta, a cabeça amaciada em seus peitos que me mordiam. A Terra fertilizava. Linda e era menos duro de coração e tragava-a para além do que estava acumulado em mim fazendo escoar desde o nascimento. Colheitas de amor, vestidinho hippie em que o corpo se alonga e nunca se completa, raio do dia translúcido. Transparência. A única, o anjo e a puta a essa saborosa hora, a que me vinha hoje à madrugadinha. Linda, e ainda me ecoava outrora atos, passos, abraços e suas mãos nas minhas até me perder para a humanidade. Nefer-Nefer-Nefer ou vestal Minéia, tanto fazia. Linda.
E nessa canção de velhos amantes, de cartas de estação, o amor é privilégio de olhos maduros, de ganhos imprevistos e principia tarde. O amor quer que lhe toque a alma, que lhe penetre os ouvidos, que lhe perdure nos sonhos. O amor é Mérito, e avança em ondas curtas. Mérito e brilho intenso no entre olhos, sofrimento e beleza. Encontrei Fernanda. Fernanda e suas curvas. Linda. A companheira da qual já não tinha esperanças de um dia voltar a ver. Fernanda, o rebolado, o riso, o estado da graça, as sem-razões do amor, por quem o cultivei semeado ao vento, nas noites frias. Quase 16 anos de distância. Fernanda a quem lhe reconhecia hoje ainda o traço.
Fernanda! Virou-se e não soube dizer se me viu. Ainda comovido com a vida de Geraldo e sua família e neste novo torpor, fui-me ao encontro, ela andava rápido. Uma mulher espera por mim e tudo contém. Fernanda! E ao fim do Paraíso o amor nos alcança, e ela voltando-se como para se certificar, chamou-me pelo nome.
19.abr.2011